Entre o limite da “Arte Prática” e da Transgressão
Hoje à noite coloquei, mais uma vez, minhas mãos contra a matéria – o muro.
Realizei outra “ofensiva selvagem”... Como norma, operava o labor plástico grafitado.
O vazado, a sutura e o corte da pele, revelam a ação contra a “ordem estabelecida”. Descobri que o contato com a superfície mural é limite e que o desejo de liberdade gera o ato de descolar o que ela reproduz, sem interferência. Percebi que a cidade é um sampler de grafites articulados em um mesmo som. Lembrei que o muro pode também desmoronar, ao mesmo tempo que é suscetível de receber modificações infinitas, fazendo emergir dali suas próprias expressões. Tento compreender suas imagens grafitadas...
Willyams Martins
_ Os cartazes colados nos muros onde antes só havia tinta spray são bem claros: “Williams Martins, Ladrão de Grafitti: o artista plástico Williams Martins, em um ato de extremo egoísmo para com a população, arranca das ruas trabalhos de arte feitos pelos outros, privatiza a obra e assina embaixo”. Completam a mensagem um cifrão ($) em letras garrafais, o link para se interar com a questão - www.artistapratico.blogspot.com - e um aviso para o artista: “se não tem talento, não f... com quem tem!”.
_ A causa de tanta polêmica foi “Peles Grafitadas”, trabalho do artista plástico Williams Martins desenvolvido durante o mestrado em Artes Visuais na Escolas de Belas Artes da Ufba. Ganhador do prêmio Braskem Cultura e Arte 2006 e do Salão de Arte em Juazeiro, “Peles Grafitadas” aconteceu em Juazeiro, Valença, Alagoinhas e Salvador, com fragmentos de grafites de cada uma das cidades. A obra de Williams despertou a ira de alguns grafiteiros baianos e provocou discussões sobre direitos autorais, utilização dos espaços público e privado, arte de galeria versus arte de rua e até sobre o próprio caráter do movimento grafite, ou grafitti, como grafam seus integrantes.
_ O trabalho de Williams consiste em “deslocar vestígios, depoimentos, signos colocados no espaço público por anônimos e trazer para o outro contexto”, explica Roaleno Costa, orientador de Williams e diretor da Escola de Belas Artes da UFBA. O artista construiu o que chama de “Poética do Deslocamento”: seleciona uma imagem pelos muros da cidade e prega um tecido de nylon com resina de poliéster na parede onde a imagem se encontra. Depois de colocado e seco, retira essa imagem cuidadosamente com espátulas e martelos para que a pele da tinta seja retirada da parede junto com o tecido. Aí basta enquadrar e colocar dentro da galeria.
_ Apesar de “Peles Grafitadas” ter acontecido durante o ano de 2006, apenas em setembro de 2007 os protestos dos grafiteiros vieram à tona, principalmente através do blog “Artista Prático” - www.artistapratico.blogspot.com. Lá, além de ameaças pessoais e fotos de trabalhos “roubados” por Williams, encontram-se supostas correções ao conteúdo veiculado pela mídia sobre o assunto e reflexões dos blogueiros: “Ao arrancar a obra da parede, você esta matando a arte, pois que saibam os leigos: arte urbana vai além de uma mera pintura na parede, sua composição é conseguida através do local em que ela se encontra, interagindo com elementos urbanos. Mas parece que nem Roaleno Costa, nem Williams Martins tenham a mínima idéia disto”.
_ Nenhum dos grafiteiros entrevistados pela Lupa soube identificar o autor do blog, que, desde setembro de 2007 até o fechamento desta matéria, não é atualizado. Houve até quem dissesse que foi criado por artistas vinculados ao grupo de grafiteiros zeroseteumcrew, mas estes negaram a autoria quando procurados para falar sobre o caso. Outros grafiteiros chegaram a promover formas diferentes de protesto, como o da madrugada do dia 14 setembro, em que, com a ajuda de músicos e simpatizantes, se reuniram na Praça do Campo Grande para uma passeata.
“Cadê o respeito do artista pelo outro?”
_ José Nildo Silva Mendes, 28 anos, o Lee27, grafiteiro há mais de 14 anos, teve um braço de Exu arrancado de um trabalho seu. Ao se deparar com o fragmento de seu grafite no folder da exposição de “Peles Grafitadas”, sentiu-se desrespeitado. “Quando alguém se apropria de algo que não lhe pertence, isso é grave! Já pensou se todo grafiteiro se apropriasse de um trabalho de Bel Borba ou Tatau que tivesse na rua? Onde estaria o respeito do artista pelo outro artista?” Ele afirmou gastar, em média, 500 reais em cada painel, e nem sempre obtém retorno financeiro, já que muitas de suas obras estão expostas gratuitamente pelas ruas da cidade. “Tento sobreviver do grafite: viajar, participar de encontros, palestras, workshops, mas é difícil”, afirma Lee27.
_ Para Marcos Costa, defensor da profissionalização do grafite, grafiteiro e estudante do nono semestre da Faculdade de Belas Artes da UFBa, faltou embasamento teórico no trabalho de Williams, visto que os trabalhos não são anônimos e, de certa forma, é fácil identificar os autores dos grafites, que sempre assinam suas obras colocando e-mails e sites para contato pessoal. “Williams se antecipou e não deu os créditos dos autores das obras que transpôs para a galeria”, afirma.
_ Marcos acredita que a pesquisa de Williams teria sido bem sucedida se ele tivesse atentado mais a esses aspectos. Em relação à indignação dos grafiteiros, considera válida, porém condena o estardalhaço que não leva a lugar algum: “depois não chamaram (Williams) para apresentar uma proposta para o bem de todos, para uma discussão sobre direitos autorais”, argumenta. Marcos teve uma assinatura sua descolada e, ao invés de tentar resolver o assunto com protestos, foi conversar pessoalmente com Williams. Na sua opinião, o mais correto seria Willians ter entrado em contato com os autores das obras para dar créditos aos grafiteiros e ter realizado uma exposição de caráter coletivo.
Transgressão às avessas
_ Os prêmios ganhos por Williams (R$ 40.000 no Braskem Cultura e Arte e R$ 5.000 no Salão de Arte de Juazeiro, ambos em 2006) despertaram o ódio de alguns grafiteiros, que o viram alcançar a mídia e os salões de arte com fragmentos retirados de seus trabalhos. Enquanto muitos grafiteiros se dizem contra “o injusto sistema de Salões, que premia quem tem a maior quantidade de amigos poderosos” (retirado do blog “Artista Prático”), outros reconhecem originalidade em “Peles Grafitadas”. No entanto, todos os entrevistados concordaram que faltou para Williams a vivência do movimento grafite soteropolitano, o qual é formado por diversos grupos, a exemplo de zeroseteumcrew e Oklancrew. Estes “clãs” interagem numa ambiência urbana onde todos os grafiteiros se conhecem, compondo um universo artístico multifacetado, em que há espaço para concordâncias e divergências.
_ Por sua vez, Roaleno Costa defende seu orientado afirmando que apenas cinco dos fragmentos retirados das ruas que compõem “Peles Grafitadas” são pedaços de grafites. “O resto é parede suja, é pichação, são coisas que não são absolutamente autorais. E eu acho que esta é a melhor parte do trabalho dele, porque grafite acontece e fica mais bonito na rua do que colocado dentro da galeria. Mas não deixou de trazer essa discussão à tona, sobre espaço público e tudo mais”, diz o diretor.
_ Roaleno ressalta que o trabalho de Williams traz uma nova discussão para o movimento grafite de Salvador: “muito das discussões sobre a problemática do grafite e dos grafiteiros que vieram à tona a partir desse trabalho de Williams, já foram feitas no Brasil vinte anos atrás, em São Paulo. Então, o grafiteiro de Salvador está agora vivenciando uma situação que explodiu a partir do trabalho de Williams”, argumenta. Para ele, a novidade é que a transposição do grafite para a galeria reacende o espírito contraventor do grafite, porém ao inverso. “Como o grafite não está mais se sustentando nessa transgressão, porque já foi absorvido pelo sistema, na hora em que Williams faz o inverso, ele comete um ato transgressor às avessas. E esse ato transgressor incomodou muito aqueles que há algum tempo eram os transgressores (os grafiteiros) e que deveriam ter continuado sendo, mas fizeram concessões demais.” Ele ainda alerta que o grafite comportado, seja em parcerias com instituições públicas e privadas ou exposto em galerias, deve tomar cuidado para não perder as principais características do movimento.
_ Em seu site, www.martins.art.br, de onde foi retirado o texto que introduz essa reportagem, Willians disponibiliza vídeos do programa Soterópolis da TVE Bahia sobre a polêmica e registro das primeiras remoções das peles. Também publicou fotos do processo técnico de fabricação das telas, que vai desde o enquadramento da imagem desejada até a montagem da tela, além de disponibilizar a sua dissertação. O que se percebe é que “Peles Grafitadas” foge aos padrões de comportamentos acadêmicos, trata-se de algo transgressor – uma característica do grafite – não comportado, anti-conservador, que envolve riscos e questionamentos. Apesar de ter desagradado um movimento artístico de grande aceitação popular, como é o movimento grafite em Salvador, Williams recorreu a uma das características principais da obra de arte: causar polêmica e reflexão na sociedade.
2 comentários:
Nossa muito bem montado visualmente o blog, gostei
Sim, provavelmente por isso e
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